segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Como esquecer?

"Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa – como é que se faz quando a pessoa que se precisa já não está lá?

As pessoas têm de morrer, os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar. Sim, mas como se faz? Como se esquece?

Devagar. É preciso esquecer-se devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer as maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas!

É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos imediatos em que ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso primeiro aceitar.

É preciso aceitar esta mágoa, esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados, se tivessem apenas o peso que têm em si; isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução.

Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha.
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.

Porque é nos momentos em que estamos mais cansados ou mais felizes que sentimos mais a falta das pessoas que amamos? O cansaço faz-nos precisar delas. Quando estamos assim, mais ninguém consegue tomar conta de nós. O cansaço é uma coisa que só o amor compreende. A minha mãe. O meu Amor. E a felicidade. A felicidade faz-nos sentir pena e culpa de não podermos partilhar. É por estarmos de uma forma ou de outra sozinhos que a saudade é maior.

Mas o mais difícil de aceitar é que há lembranças e amores que necessitam do afastamento para poderem continuar. Afonso Lopes Vieira dizia que Portugal estava tão mal que era preciso exilar-se para poder continuar a amar a pátria dele. Deixar de vê-la para ter vontade de a ver. Às vezes a presença do objecto amado provoca a interrupção do amor. É complicado o curto-circuito, o encurralamento, a contradição que está ali presente, ali, na cara do coração, impedindo-o de continuar.
As pessoas nunca deviam de morrer, nem deixar de se amar, nem separar-se, nem esquecer-se, mas morrem e deixam-se e separam-se e esquecem-se. Custa aceitar que os mais velhos, que nos deram vida, tenham de dar a vida para poderem continuar vivos dentro de nós. Mas é preciso aceitar. É preciso aceitar. É preciso sofrer, dar uns murros na mesa, não perceber. E aceitar. Se as pessoas amadas fossem imortais perderíamos o coração. Perderíamos a religiosidade, a paciência, a humanidade até.

Há uma presença interior, uma continuação em nós de quem desapareceu, que se ressente do confronto com a presença exterior. É por isso que nunca se deve voltar a um sítio onde se tenha sido feliz. Todas as cidades se tornam realmente feias, fisicamente piores à medida que se enraízam e alindam na memória que guardamos delas no coração. Regressar é fazer mal ao que se guardou.
Uma saudade cuida-se. Nos casos mais tristes separa-se da pessoa que a causou. Continuar com ela, ou apenas vê-la pode desfazer e destruir a beleza do sentimento, as pessoas que se amam mas não se dão bem só conseguem amar-se quando não se dão.

Mas como esquecer? Como acabar com aquela dor? É preciso paciência. É preciso sofrer. É preciso aguentar.

Há grandeza no sentimento. Sofrer é respeitar o tamanho que teve um amor. No meio do remoinho de erros que nos revolve as entranhas, da raiva, do ressentimento, do rancor – temos de encontrar a raiz daquela paixão, a razão original daquele amor.

As pessoas morrem, magoam-se, separam-se, abandonam-se, fazem os maiores disparates com a maior das facilidades. Para esquecê-las, é preciso chorá-las primeiro. Esta é uma verdade tão antiga que espanta reparar em como ainda temos esperanças de contorná-la. Nos uivos das mulheres nas praias da Nazaré não há – histeria – nem ignorância – nem fingimento – Há a verdade que nós os modernos, os tranquilizados, os cools, os cobardes, os armados em livres e independentes, os tanto-me-fazes, os anestesiados, temos medo de enfrentar.

Para esquecer uma pessoa não há vias rápidas, não há suplentes, não há calmantes, ilhas nas Caraíbas, livros de poesia – só há lembranças, dor e lentidão, com uns breves intervalos pelo meio para retomar o fôlego.

Esta dor tem de ser aguentada e bem sofrida com paciência e fortaleza. Ir a correr para debaixo das saias de quem for é uma reacção natural, mas não serve de nada e faz pouco de nós próprios. A mágoa é um estado natural. Tem o seu tempo e o seu estilo. Tem até uma estranha beleza. Nós somos feitos para aguentar com ela.

Podemos arranjar as maneiras que quisermos de odiar quem amamos, de nos vingarmos delas, de nos pormos a milhas, de lhe pormos os cornos, de lhe compormos redondilhas, mas tudo isto não tem mal. Nem faz bem nenhum. Tudo isto conta como lembrança, tudo isto conta como uma saudade contrariada, enraivecida, embaraçada por ter sido apanhada na via pública, como um bicho preto e feio, um parasita de coração, uma peste inexterminável, barata esperneante: uma saudade de pernas para o ar.

O que é preciso é igualar a intensidade do amor a quem se ama e a quem se perdeu. Para esquecer, é preciso dar algo em troca. Os grandes esquecimentos saem sempre caros. É preciso dar tempo, dar dor, dar com a cabeça nas paredes, dar sangue, dar um pedacinho de carne.

E mesmo assim, mesmo magoando, mesmo sofrendo, mesmo conseguindo guardar na alma o que os braços já não conseguem agarrar, mesmo esperando, mesmo aguentando como um homem, mesmo passando os dias vestido de preto, aos soluços, dobrado sobre a areia da Nazaré, mesmo com muita paciência e muita má vontade, mesmo assim é possível que não se consiga esquecer nem um bocadinho.

Quanto mais fácil amar e lembrar alguém – uma mãe, um filho, um grande amor – mais fácil deixar de amá-lo e esquecê-lo. Raio de sorte o lindeza, miséria suprema do amor. Pode esquecer-se quem nos vem à lembrança, aqueles de quem nos lembramos de vez em quando, com dor ou alegria, tanto faz, com tempo e com paciência, aqueles que amámos com paciência, aqueles que amámos sinceramente, que partiram e nos deixaram, vazios de mãos e cheios de saudades.

E quando alguém está sempre presente? Quando é tarde. Quando já não se aguenta mais. Quando já é tarde para voltar atrás, percebe-se que há esquecimentos tão caros que nunca se podem pagar. Como é que se pode esquecer o que só se consegue lembrar? Aí, está o sofrimento maior de todos. O luto verdadeiro. Aí está a maior das felicidades."

Miguel Esteves Cardoso in O Independente, 26 Outubro 1990

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Uma volta fácil...

Eu quero uma boa vida
Mas eu não quero apenas um passeio
O que eu quero é trabalhar para isso
Sentir o sangue e o suor entre os meus dedos
É isso que eu quero para mim

Eu quero saber tudo
Talvez um dia consiga
O que eu quero é encontrar o meu lugar
Respirar o ar e sentir o sol no rosto dos meus filhos
É isso que eu quero para mim

Eu dou voltas e voltas como um círculo
Consigo ver uma imagem clara
Quando toco no chão, fecho o círculo por completo
Estou no meu lugar e sinto-me em casa
Estou em casa

Eu quero largar todas as decepções que me esperam
O que eu quero é viver para sempre
Sem definição de tempo e espaço
É um lugar solitário
É isso que eu quero para mim.

M [2003]

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Longe e perfeito...

Saiu-me do ventre uma sensação estranha
como se no ar existisse um veneno
que de tão tóxico e atordoante
tivesse o condão de me deixar leve
e vulnerável
ao ponto de sair de mim e vaguear
por aí, longe e sem destino.

Saiu-me do ventre, arrancado
o sentimento profundo
que estaria perdido por aí
no ar onde as nuvens tocam o céu
e por lá se deixam estar.

Perfeito saber
arrancado de um dia
que de tão perfeito parece que via
o momento roubado no tempo
onde não houve lugar a mágoa
mas a uma perfeita ousadia
de quem pensa que podia
fazer do sol uma fonte de lua
que nua iluminava a noite
perdida.

Longe e perfeito, o dia
Arrancado o ventre, sem dor
Atordoante mas sonhado.

© [2009] RR

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Doença do bem...

Tentei esconder a minha raiva
De mim, por ti
Não sei por quem o fiz
Avançou meus braços
Como a cura para o bem
E eu não quis deixar

Em ti pensei ouvir a minha voz
Meu ar, tão só
Tentando ser feliz
Diz quais os teus planos
Quem vais tu matar no fim
Quando eu acordar

Depois de ver o que acabou
De que vai valer a minha voz
Será que o bem nos faz sofrer
Por nunca o vermos existir em nós

E é tão bom sentir de novo o teu calor
É tão maior que o mais profundo amor
E é isso que me assusta
Ver-te assim denunciar
Quem eu não quis ser
E a mesma luz que nos guiou
Que nos trouxe aqui
Devolve-nos ao escuro
Antes do meu corpo arder
Sem promessas de um futuro
Só eu e os meus planos
Sem nenhum sinal de ti
Para me salvar

Depois de ver o que acabou
De que vai valer a minha voz
Será que o bem nos faz sofrer
Por nunca o vermos existir em nós

O que vai valer
Porquê esconder a minha raiva
O que vai valer
Isso é fugir da minha sombra

Depois de ver o que acabou
De que vai valer a minha voz
Será que o bem existe em nós

© [2000] Manuel Cruz
Música: Clã / Lustro

segunda-feira, 22 de junho de 2009

O tempo que avança...

Parem tudo!
Não deixem avançar mais nada!
Parem o pensamento
e o movimento do tempo

Deixem ficar parado
Quero desfrutar cada hora, minuto e segundo
Os momentos são curtos
Por isso parem tudo
Congelem o tempo
Não deixem avançar mais nada

Quero desfrutar aqueles momentos
Em que estou parado
Como se de dias, meses ou anos se tratasse

Prendam o tempo
Ele teima em escapar
Por entre os dedos
Dedos de uma mão
Enquanto a outra te segura
Não te deixa passar
E faz o tempo abrandar

As palavras não fizeram sentido
Ficou o sentimento e a expressão
o olhar e o movimento
Por isso não deixem avançar mais nada
Parem o tempo

Perderam-se as palavras
Encontrou-se o tempo
Deixou-se o sentimento
Já nada faz sentido
Apenas lido com tudo o que o tempo fez avançar
Por teimar em não parar

Por isso congelem o tempo
Aquela noite ímpar
Não deixem avançar mais nada

© [2009] RR